Quando criança, quem nunca se sentiu em um submarino, uma nave espacial, um castelo ou um forte apache apenas com caixas de papelão? Durante a escola, quem nunca esperou ansiosamente o sinal de intervalo para sair da sala de aula e brincar com os colegas no pátio?
Para quem acredita que o recreio é apenas um hiato no cotidiano escolar, é necessário compreender que o tempo de brincar é tão fundamental quanto o tempo de estudar. E que as crianças se desenvolvem enquanto brincam.
A importância da brincadeira na formação do ser humano guiou as discussões realizadas no seminário O Direito de Brincar: da teoria à prática, finalizado no dia 11/11 em São Paulo.
Durante o evento, foi ressaltado o papel não apenas do brincar – mas sim do brincar livre, sem mediação direta de pais ou educadores. “Adultos devem participar desse momento como anjos da guarda, organizando os espaços e dando oportunidades, mas não interferindo em sua dinâmica, pois não é ele quem decide o jogo”, defende Marilene Flores Martins, da IPA Brasil.
O Portal Aprendiz esteve no evento e selecionou as principais razões para você deixar uma criança brincar de forma livre e espontânea. Confira!
1) Brincar promove o desenvolvimento integral
O ato de brincar é uma oportunidade educativa que vai muito além dos conteúdos do currículo escolar tradicional. Para Ana Cláudia Arruda Leite, do Instituto Alana, priorizar os momentos lúdicos e livres da criança é possibilitar o seu desenvolvimento em plenitude, além de ser um processo no qual a sociedade se humaniza.
“Qual infância estamos construindo? É comum os pais e educadores reclamarem da falta de tempo, e o brincar é colocado em segundo, terceiro e até quarto plano. As consequências são graves para o desenvolvimento das crianças e, ao final, também da vida adulta. Não à toa, vemos hoje muita medicalização infantil”, aponta Ana Cláudia, citando o filme Tarja Branca – A revolução que faltava.
Para o escocês Andrew Swan, diretor pedagógico do projeto Spice Kids, brincar é uma oportunidade da criança conhecer outras pessoas da sua idade e aprender com elas. “É nesse momento que acontece o desenvolvimento social, criativo e emocional.”
Opinião semelhante tem Sirlândia Teixeira, vice-presidente da ABBri (Associação Brasileira de Brinquedotecas). “Quando a brincadeira é livre, a autonomia da criança é favorecida. Isso alimenta o seu desenvolvimento integral: físico, intelectual, emocional e social”, arremata.
2) Está previsto nas leis brasileiras e mundiais
Há uma série de dispositivos nacionais e internacionais que ressaltam a importância da brincadeira no processo de aprendizagem de bebês e crianças. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece o brincar e o divertir-se como aspecto fundamental do direito à liberdade; já o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998) garante “o direito das crianças a brincar como forma particular de expressão, pensamento, interação e comunicação infantil”.
No contexto mundial, a Convenção sobre os Direitos da Criança da Unicef reconhece, em seu Artigo 31, o direito da criança ao repouso, ao tempo livre e à participação em jogos e atividades recreativas próprias da sua idade. “No Brasil, porém, é baixa a consciência da importância do brincar e da recreação”, observa Marilene. “Para atender as necessidades do adulto, as crianças brincam em espaços confinados como shoppings centers e playgrounds de condomínios.”
De acordo com Sirlândia, tais dispositivos não garantem que esse direito seja exercido nas escolas do país.
3) Na escola não se brinca (ao menos livremente)
“Por que não se brinca dentro da escola?”, questiona a vice-presidente da ABBri. “A maioria das instituições de ensino utiliza apenas o horário do intervalo para deixar os alunos brincarem. Isso está errado”, complementa.
Sirlândia lembra que nessas escolas não existe espaço para fantasias infantis – os únicos brinquedos utilizados são os pedagógicos ou educativos para uso didático. “É claro que a brincadeira deve ser segura, mas ela precisa também trazer um desafio para a criança. O educador não precisa ter um objetivo toda vez que a criança for brincar, pois é nesse momento que surge a espontaneidade.”
Para Ana Cláudia, é preciso “repensar o momento do brincar, dando a oportunidade da criança conduzir o seu interesse e seu tempo”. Por meio da metodologia lúdica, a criança aprende naturalmente. “É um espaço em que ela cria, sente e pensa. Não é isso que a escola precisa?”, pergunta Sirlândia, convocando os educadores e pais a exercerem o brincar livre.
4) Brincar é inerente à condição da criança no mundo
“Quem trabalha com criança naturalmente teria que trabalhar com o brincar.” Essa é a opinião de Paula Selli, do Museu Lasar Segall, instituição que tem promovido a visita de bebês e mães ao seu acervo. Durante as atividades, são trabalhados diversos aspectos do desenvolvimento do ser humano: lazer, diversão, descoberta, liberdade, noção de regras, memória, experimentação, autonomia, socialização, identidade, representação e imaginação. “Ao mesmo tempo em que é uma ação de todos nós, o brincar é inerente a condição da criança e sua percepção do mundo”, sustenta Paula.
Segundo Ana Cláudia, a brincadeira pode revelar a essência da criança e esse processo deve ser protagonizado mais pela relação com a natureza do que com os brinquedos industrializados. “Defendemos uma infância que tenha tempo para construir seus próprios brinquedos. A natureza é uma grande amiga da criança e possibilita um terreno muito fértil para a imaginação e um brincar ativo”, sugere. “O brincar é um gesto que diz respeito a condição humana. É a nossa primeira intervenção no mundo.”
5) Brincar é imprevisível e estimula a criança a controlar o seu limite
Ex-funcionário do Centro Nacional do Brincar, na Escócia, Andrew rememora sua infância em cima das árvores, correndo pelos bosques e pulando nos lagos. “Hoje, a criança não tem muitas oportunidades de brincar, pois muitas delas não saem nem do apartamento. Precisamos criar oportunidades, porque elas continuam querendo brincar como antigamente”, ressalta.
O escocês acredita que, de algo natural, a brincadeira passou a ser controlada pelos adultos. “Vivemos em uma sociedade de aversão ao risco, que entende-o negativamente – e não como oportunidade. Por isso, vemos a redução de parquinhos e do acesso aos espaços públicos. A minimização dos riscos levou à criação de espaços estéreis e monótonos para as crianças.”
A medicalização excessiva de crianças, um fenômeno cada vez mais comum, provém da falta de contato com a natureza, acredita Ana Cláudia. “Ao invés de Ritalina, podíamos dar parques e espaços públicos para as crianças e pensar em maneiras de levar a brincadeira para dentro das escolas”, opina.
Para Andrew, ao ser imprevisível, incerto e novo, o brincar contém naturalmente elementos de risco. “Crianças são atraídas por atividades arriscadas: correr, pular, fazer algo que nunca fizeram, testando o limite de seu controle.”
6) É ferramenta para a construção de uma cidade educadora
A busca por espaços públicos mais convidativos à população em geral e, especificamente, às crianças, deve ser objetivo de toda a sociedade. “A criança precisa vivenciar o dia a dia da cidade. Ela tem que se sentir em sua casa quando está no espaço público”, sustenta Irene Quintáns, da Red Ocara.
“Contudo, o que vemos é a sociedade se fechando cada vez mais, fazendo com que o espaço para brincadeiras se restrinja ao playground ou até mesmo à varanda do apartamento. Tenho certeza de que, para muitas crianças, brincar na praça é um luxo.”
Para Bruna Leite, do projeto A Chance to Play, o brincar é uma importante ferramenta na construção de uma cultura de paz, “pois através dele você reforça relações familiares e de amizades. O direito ao brincar fortalece os vínculos comunitários”.
Por fim, Ana Cláudia sugere que as crianças possuem a receita ideal para o surgimento de uma nova relação entre os cidadãos, que preze pela afinidade e compaixão e não pela violência e distanciamento. “A criança ensina nós, adultos, a sermos mais acolhedores da diferença.”
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