quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O Caso do Colégio Estadual Coronel Pilar - Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil

A escola é um lugar de diferenças. E diferença não é sinônimo de deficiência.

Eliana Pereira de Menezes


Estamos construindo uma cultura da aceitação das diferenças, da aceitação real e concreta, onde se ensina e se aprende com as diferenças.

José Clóvis de Azevedo




Introdução

O Colégio Estadual Coronel Pilar tornou-se referência em educação inclusiva no município de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Sua primeira experiência de inclusão remonta ao ano de 1993, quando recebeu seu primeiro aluno cego em uma classe de ensino regular. Contexto histórico, portanto, em que sequer o arcabouço jurídico nacional e internacional relacionado à inclusão estava bem deliberado, disseminado ou consolidado.
Foi uma escola que reconheceu a importância social e aceitou o desafio pedagógico de ter salas de aula mais plurais quando tais práticas ainda eram absolutamente incipientes e experimentais na educação brasileira. Liderada por seu diretor da época, professor Paulo, a escola enfrentou a resistência e a desconfiança de uma cultura educacional que via como natural a separação de estudantes com deficiência daqueles que se dirigiam ao ensino regular. A mudança, claro, não foi da noite para o dia.
Renata Basso, estudante com Síndrome de Down, acaba de completar o ensino médio do Colégio Coronel Pilar. Sua experiência foi rica e singular, como todo caso individual de inclusão. Dois aspectos chamam especial atenção no caso de Renata: de um lado, o protagonismo de sua família nas atividades escolares; de outro, as soluções testadas pelo colégio para atender às necessidades particulares dela no contexto do ensino médio.

Família e inclusão

A trajetória educacional de Renata não poderia ser narrada sem o devido destaque para o apoio constante e bem informado de sua família. Como diz a professora Eliana Pereira de Menezes, coordenadora do curso de educação especial da Universidade Federal de Santa Maria, “Renata tem uma família que faz apostas nela”. Essas apostas se traduziram na permanente interação entre a sua família, representada principalmente por sua irmã mais velha, Rosane Basso, a escola, seus respectivos professores e gestores. 
Sobre as experiências de Renata antes de ingressar na Coronel Pilar, Rosane conta: “Pensamos em colocar a Renata em uma escola particular. Mas a escola particular não aceita. Pagar a escola e um tutor não tem o porquê. Isso não se chama inclusão.” As instituições particulares alegavam, segundo ela, que não estariam preparadas, que a presença de Renata iria atrapalhar as aulas e que os demais pais poderiam criticar essa mudança repentina de paradigma, por acreditarem que traria prejuízos de aprendizado a seus filhos.
Responsável pelas principais escolhas de rumo educacional de Renata, Rosane acompanhou de perto o aprendizado de sua irmã menor em cada estágio do seu desenvolvimento, em cada disciplina e as suas relações com cada professor. Afirma que a família sempre evitou tratar Renata como uma criança que tivesse capacidades inferiores a qualquer outra, e que em todo momento dialogou e exigiu o máximo esforço dela para o cumprimento das exigências da escola. Nas suas palavras: “Sempre a tratamos como uma criança normal, nunca como pobrezinha que tem deficiência. Sempre como normal. Nunca tivemos vergonha de sair com ela. Sempre a ensinamos a ser responsável, não podia faltar na aula.”
Isso nunca significou, para Rosane, que as peculiaridades de aprendizado de sua irmã não devessem ser levadas em conta por suas professoras e professores. Estes não deixaram de ser cobrados a compreender tais diferenças e fazer adaptações naquilo que considerassem adequado do ponto de vista pedagógico para o aproveitamento de Renata. Rosane afirma que muitos educadores do Coronel Pilar estiveram abertos a essa cobrança e responderam de maneira construtiva, tal como lhes parecesse mais eficaz. Sônia Morgental, professora de matemática, ilustra esse desenvolvimento: “O primeiro passo é aceitar o aluno na sala de aula. Quando a educação inclusiva começou, havia resistência dos professores. Mas com o tempo, perceberam que era possível usando caminhos e metodologias diferentes. A resistência ainda está presente, mas está mudando à medida que as práticas bem sucedidas de outros professores vão sendo percebidas.”
Exemplo eloquente do criativo monitoramento que fazia do cotidiano escolar de Renata, Rosane, ao notar que sua irmã estava sendo sistematicamente excluída das atividades em grupo com os colegas, e ao perceber que os professores permaneciam passivos e deixavam que a dinâmica de formação de grupos fosse inteiramente espontânea, sugeriu a eles, professores, que já definissem a composição dos grupos de modo a não sujeitar Renata a esse constrangimento e frustração. E, mais do que isso, instigou a própria Renata: “Tem que ser esperta, se convide!”

Desafio pedagógico: a interação entre o professor de AEE e o professor de disciplina

Os educadores não precisaram enfrentar sozinhos os desafios impostos por Renata ou por sua família. Tiveram apoio, afinal, de um conjunto de pessoas que ocupam diferentes funções na organização escolar, funções estas indispensáveis para o sucesso da inclusão: a direção, a supervisão, a coordenadoria regional e, sobretudo, a articulação rotineira e planejada entre os professores de cada disciplina e o professor de AEE1 designado para trabalhar com o respectivo estudante.
O Atendimento Educacional Especializado tem, conforme a Política Nacional de Educação, responsabilidade crucial na concretização da educação inclusiva. Sandra Maximowitz, professora de AEE, relata que atende Renata duas vezes por semana no contraturno, e que tenta fazer a interlocução com os professores, a direção, a família e o próprio estudante. Afirma: “O AEE não é reforço escolar. Eu entendo que os alunos queiram que eu explique geografia, matemática, biologia, mas não tenho como dominar todas essas áreas. Nessa hora, eu busco algum professor da disciplina específica para ajudar a Renata. Mas minha função é outra. Tento trabalhar as funções superiores da Renata, estimular sua atenção, leitura, curiosidade. Faço o mais básico, o específico fica com a Sônia.” Este trabalho é feito na chamada sala de recursos multifuncionais, espaço equipado para tais atividades. A sala de recursos, junto com a sala de aula regular, vem a substituir gradualmente as tradicionais “salas de educação especial”, destinadas a reunir exclusivamente estudantes com deficiência.
Sônia, professora de matemática, também reflete sobre a função do AEE: “Nunca tive resistência à inclusão, aos poucos vamos descobrindo os caminhos para incluir. Nem todos os professores descobriram ainda. Os profissionais de AEE não têm conhecimento de todas as disciplinas, mas o diálogo com a Sandra tem sido importante para encontrar soluções para a Renata. A Sandra traz a experiência dela, vemos por diversos caminhos. Uma pena que tenhamos pouco tempo para nos encontrar, aprofundar e sistematizar esses diálogos e descobertas.”
A interação entre o professor de disciplina e o AEE encontra obstáculos que se acentuam ainda mais no ensino médio. O primeiro, relatado por mais de um professor no Coronel Pilar, diz respeito a uma dificuldade logística básica: dado o grande número de matérias na grade curricular, e consequentemente o grande número de educadores para cada classe, torna-se mais difícil pôr em prática e rotinizar essas conversas periódicas com tantos profissionais. Sandra novamente explica: “É preciso mais tempo para que os professores possam fazer essa ponte com o aluno e uma interlocução maior conosco.” E conclui: “O ensino médio tem um número grande de professores, cada um tem seu horário, e ainda sofremos com a rotatividade.” 
O grande desafio prático seria encontrar janelas comuns na agenda que possibilitassem encontros de planejamento personalizado, com mínima periodicidade, sem os quais a educação inclusiva ficaria aquém do seu potencial pedagógico e emancipatório. Segundo Eliana Pereira, “para que não se exclua mais do que se inclua”, as práticas inclusivas precisam ser encaradas com comprometimento por todos dentro da comunidade escolar.
Outro desafio que ainda se observa em depoimentos de professores de disciplina, que reflete o diagnóstico de Sandra, é a sensação de que falta formação adequada para lidar com estudantes com deficiência, ou, pelo menos, uma interação mais intensa com o AEE. Conforme reclama Tânia, professora da educação especial do Coronel Pilar: “Incluíram muita coisa, mas falta incluir o professor, que continua despreparado.”
Entretanto, para além de questões práticas ou logísticas, Eliana Pereira considera que o ensino médio enfrenta um problema mais profundo, de concepção: “A escola tem sido uma preparação para o vestibular, e não para a vida”. Se o foco é o vestibular, para Eliana, o objetivo didático central passa a ser a transmissão exaustiva de pacotes prontos e acabados de conteúdo, sem a preocupação de explorar habilidades singulares que os educandos, não só os incluídos, por assim dizer, possam ter. 
Refém do vestibular e preso a uma lista pré-fixada de conteúdos, o ensino médio concebido nesses termos faz com que os princípios da educação inclusiva, avessos a padrões avaliativos estáticos e dirigidos a um tipo idealizado de estudante, tenham ainda mais dificuldade de concretização. Por ser um modelo hipersensível às singularidades de cada estudante, a educação inclusiva não poderia seguir atada a um script único como o atual do ensino médio, segundo Eliana. Carregaria, por isso mesmo, uma barreira ao acesso igualitário para o ensino.
Roberta Forgiarini, da coordenadoria regional de educação de Santa Maria, reage à crítica de que estudantes com deficiência só poderiam ser incluídos se atendessem aos padrões esperados daquele tipo ideal de educando. Contra essa resistência, ou contra o senso comum que precocemente diagnostica e postula com convicção que “nesse caso não dá para incluir”, Roberta pergunta: “Quem disse que o aluno não tem condições? Já tentou fazer alguma coisa diferente ou será que presumiu que o aluno não tem condições?” Para ela, a educação inclusiva não tem, e nem poderá ter uma receita geral, que possa ser aplicada a qualquer caso. Incluir seria um permanente exercício de tentativa e erro, e não haveria fórmula ou critério para determinar se e quando os educadores deveriam parar de tentar. Ou, como propõe José Clóvis Azevedo, secretário de educação do estado: “A gente aprende incluindo, não há outra forma de aprender.”
Ainda que de maneira incompleta e com muitos aspectos pedagógicos, administrativos e estruturais por aperfeiçoar, o Colégio Coronel Pilar acredita ter proporcionado à Renata essa abertura à experimentação, e faz um balanço positivo desta experiência, sem deixar de reconhecer os erros e eventuais acidentes de percurso. Como diz Eliana: “A existência da política por si só não garante nada. É preciso que os sujeitos que trabalham com esses alunos entendam que é possível. A Renata teve esse privilégio.” 
Ainda nas suas palavras, estudantes com deficiência adequadamente incluídos no ensino regular podem tornar-se menos dependentes e ganhar autonomia para conviver em sociedade. Ao mesmo tempo, ela também concorda que levar a sério o “imperativo da inclusão” pode ter, no bom sentido, um efeito desestabilizador: desencadear um processo a partir do qual as premissas teóricas e arranjos práticos da educação sejam problematizados e redesenhados.

“O copo já estava cheio”: repensando a educação

A cidade de Santa Maria tem condições privilegiadas para despertar práticas inovadoras em educação inclusiva. Sua universidade federal oferece habilitação específica na área, onde não apenas se formam os quadros de educadores para escolas da região, mas também se produzem pesquisas acadêmicas sobre o assunto. 
De um lado, a universidade tem um potencial significativo para funcionar como instância reflexiva a respeito desse modelo de educação e, de outro, escolas podem testar e avaliar as diferentes experiências discutidas na universidade. Estas experiências, por sua vez, retroalimentam a pesquisa acadêmica e estimulam, assim, um círculo virtuoso entre teoria e prática.
A professora Eliana observa que, ainda hoje, persiste uma única forma de pensar e fazer a escola no país inteiro, uma forma há muito obsoleta e, surpreendentemente, não muito distante do modo como se pensava e fazia no século XVIII. Entende que somente nessa perspectiva mais abrangente e multifacetada, que põe em xeque a própria ideia enraizada de escola, o tema da educação inclusiva será discutido de maneira mais produtiva. 
A inclusão, portanto, não seria uma tarefa isolada, que poderia ser bem ou mal sucedida independentemente de outros componentes. Segundo Eliana, “a escola já não está boa para ninguém, não só para o aluno com deficiência.” Atingir um padrão ideal de inclusão numa escola que, por si só, permanece fora do seu tempo, seria uma tarefa inviável. Muitos dos obstáculos, nesse sentido, não poderiam ser separados de patologias mais gerais do modelo de ensino.  
Gecy Klauck, presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, argumenta na mesma direção: “Não era o aluno com deficiência o problema. Aquele copo já estava cheio e ele foi a última gota para romper um processo e entrar num outro estágio de se repensar a educação, que há anos não estava boa. O professor de sala de aula estava sozinho há muito tempo.” De acordo com essa visão, a inclusão, mais do que trazer um problema isolado, ajuda a escancarar aqueles princípios e práticas da educação tradicional que não mais se sustentam e que precisam ser reformados.
Entre essas reformas, a substituição gradual das “classes especiais” por um modelo no qual os estudantes com deficiência sejam atendidos na classe regular com o suporte de uma sala de recursos, tornou-se meta da política pública de educação. 
Nas classes especiais, tais estudantes eram reunidos e recebiam (ou ainda recebem) uma educação em apartado. A classe especial poderia ser vista como modalidade análoga à filosofia do “separados mas iguais” (separate but equal), eufemismo jurídico que disfarçava com cores neutras e justificava oapartheid nas escolas americanas até a década de 60, quando foi derrubado por uma famosa decisão da Suprema Corte americana no caso Brown v. Board of Education
Classes especiais, portanto, a despeito de seu inegável mérito histórico e de seu apelo, passaram a ser percebidas não apenas como segregadoras, mas como incapazes de fornecer uma educação promotora de algum grau de autonomia. Ao contrário, poderiam enraizar e eternizar a dependência.
Segundo Roberta Forgiarini, a inclusão é uma aposta propriamente pedagógica, com propósito de aprendizagem e não de socialização. Ainda que traga também o benefício adicional da socialização em ambientes plurais, nos quais as diferenças humanas não são vistas como algo anormal, o desafio primário da inclusão é encontrar o modo particular pelo qual cada aluno aprende e, assim, conquista maior autonomia.

Inclusão e escola pública: educação para a democracia

O secretário José Clóvis identifica grande afinidade da educação inclusiva com a escola pública: “A escola pública é uma escola virtuosa porque ela não escolhe os seus alunos, ela acolhe a todos: pobres, ricos, remediados, pessoas com deficiências. Ela não pode ser um espaço de confirmação da exclusão social. As pessoas que chegam na escola têm que ser acolhidas e receber uma oportunidade de inclusão real através da aprendizagem, através do conhecimento.” Para o secretário, a escola privada seria “essencialmente excludente porque escolhe aqueles que podem pagar, uma escola seletiva.”
Enquanto a escola pública seria não-discriminatória por definição, a escola privada, na percepção do secretário, seria excludente por vocação. Uma está comprometida com a igualdade. A outra escolhe a quem quer ensinar, conforme os critérios econômicos, sociais, culturais e médicos que bem entender. Nesta, estudantes seriam consumidores de um serviço aberto apenas aos que atendem a um padrão minimamente homogêneo, que não criam ruídos no processo pedagógico e que têm capacidade de pagar. Naquela, alunos seriam cidadãos em formação que compartilham de um mesmo espaço independentemente de suas diferenças. Ainda que juridicamente essa liberdade de escolha da escola privada seja polêmica, pois também está sujeita às normas gerais da educação nacional, esta questão permanece em aberto até que os tribunais sejam chamados a se manifestar sobre o assunto e se consolide uma posição oficial na jurisprudência.2
Por mais aberta que uma escola privada queira e consiga ser, haveria uma certa “incompatibilidade genética” entre a autonomia privada no campo educacional e o dever de incluir como compromisso político-institucional absoluto. Seja como for, o secretário adota uma visão cética quanto à possibilidade de se harmonizar, com as práticas inclusivas, a lógica da autonomia privada, da liberdade econômica, e seus respectivos imperativos financeiros. 
Ainda que sob regulação e fiscalização estatal, a escola privada seria, por inércia ou inclinação, resistente às desafiadoras transformações trazidas pela educação inclusiva, não só do ponto de vista econômico, mas também cultural e político.
Uma escola pública, por essas razões, possuiria maior sintonia com a própria ideia de democracia. Uma escola que não estiver preparada para atender a todos seria, por isso mesmo, uma escola menos democrática. No Brasil de hoje, diga-se de passagem, é também uma escola que, em alguma medida, descumpre a lei. O grande desafio na aplicação dessa lei é resumido pelo secretário: “Nós estamos aprendendo a trabalhar com os diferentes porque a nossa sociedade é historicamente excludente e nunca aceitou as diferenças. A exclusão foi naturalizada.”
Em resumo, para o secretário José Clóvis, a escola pública seria referência naquilo que enxerga como as três dimensões fundamentais da educação: “Primeiro, a democratização do acesso, que é a garantia de que todos possam entrar na escola. Segundo, a democratização da gestão, que é aquela que permite que todos os integrantes de uma comunidade escolar sejam sujeitos, que participem, tenham voz e tenham vez. E, por fim, aquilo que é mais difícil de democratizar, que é a democratização do acesso ao conhecimento.
Estes são três parâmetros exigentes para a concessão do selo de uma “escola democrática”. E dificilmente, na visão do secretário, uma escola privada conseguiria competir com a pública nessas dimensões. O Colégio Coronel Pilar, nas falas e opiniões de seus professores, gestores e estudantes, tem consciência da necessidade de aperfeiçoamento nessas dimensões. Apesar dos obstáculos que subsistem para o pleno cumprimento daqueles três objetivos, a escola demonstra perceber que é nesta direção que deve caminhar. E foram exatamente estas características que permitiram à Rosane, diante de outras opções que se fecharam à Renata, assegurar um destino educacional para sua irmã.

Os próximos passos

Nesses mais de 20 anos, o Colégio Coronel Pilar passou por uma série de experiências inclusivas. Segundo sua atual diretora, professora Deise Beatriz Corrêa, hoje em dia quando os pais levam os filhos para a escola pela primeira vez, notam que a escola é aberta a alunos com deficiência auditiva, visual, a cadeirantes etc. Estes alunos frequentam, sobretudo, as salas regulares de ensino e não mais as tradicionais salas especiais (que passam por gradual processo de extinção no Colégio). Para ela, esse contato inicial ajuda a família a entender que os filhos estão numa instituição que abraça esta filosofia e que conviverão com a diferença.
Apesar de casos assim, ainda não se pode dizer, no ano de 2014, que aquela cultura de desconfiança tenha sido superada no ambiente educacional brasileiro. A realidade política, institucional, jurídica e pedagógica, no entanto, é bastante diversa daquela dos anos 90. Como todo processo de transformação social e de mudança de mentalidades, a educação inclusiva vem, progressivamente, fincando suas raízes na realidade. 
Em diversas regiões do país, já se pode vislumbrar experiências inclusivas de sucesso no ensino fundamental. Mesmo que ainda não universalizadas em razão das dificuldades operacionais e dos obstáculos estruturais presentes num território tão grande e heterogêneo, tais práticas são reconhecidas por educadores e gestores em educação como exemplos que merecem ser replicados.
Este quase consenso político e pedagógico ainda não foi construído, contudo, no ensino médio. Este é hoje, segundo muitos especialistas, o principal ‘gargalo’ da educação pública brasileira. Mas o desafio posto pelo compromisso nacional com a educação inclusiva é apenas um dos ingredientes desta questão. 
Mais do que envolver níveis preocupantes de universalização e de evasão (já que perde um número significativo de estudantes nessa transição), o ensino médio precisa repensar suas prioridades pedagógicas à luz das demandas contemporâneas relacionadas tanto à formação para a cidadania quanto à preparação para um mercado de trabalho mais dinâmico e em permanente mutação.
Na percepção geral da comunidade escolar, o caso de Renata traz evidências de que a inclusão no ensino médio é possível, com tudo que ainda há por aprender e melhorar. Para Sandra, professora de AEE, “a diferença de Renata é que a família começou a lutar desde cedo.” Mas o Colégio respondeu permanentemente aos desafios da família. Para Rosane, essa atitude geral de sua família, junto com o apoio da escola e o diálogo com os professores envolvidos permitiu que Renata aprendesse e amadurecesse de maneira extraordinária, se comparada a outras crianças com Síndrome de Down que não tiveram as mesmas oportunidades. Nas suas palavras, “estar na escola normal foi o que fez com que ela fosse além.”
Sônia, professora de matemática, também conta o processo individual por que passou até que se convencesse do papel da educação inclusiva: “Já passei pela fase de acreditar que alunos com deficiência não poderiam estar na classe normal, porque achava que eles se sentiriam discriminados. Eu me coloquei no lugar dos pais: se tivesse filho com deficiência, será que gostaria que ele ficasse somente com os pares nas mesmas condições? Depois de ler a respeito e de ver como os pares não se desenvolveriam, comecei a aceitar.”
A política de educação inclusiva não se põe como mero apêndice de uma política educacional tradicional, um pequeno corretivo a preencher uma lacuna dentro de uma política que, exceto por este lapso, vai bem. Ao contrário, os princípios da educação inclusiva parecem requerer, tal como se lê em tantos depoimentos, que se repense a estruturação da escola e do ensino por inteiro. Teriam, por isso, potencial subversivo e transformador. Quais os principais dilemas que podem surgir nesse processo de transformação? Como decidir sobre eles a partir de critérios e processos democráticos e igualitários? Quais as responsabilidades particulares da escola, dos professores, da família e da comunidade no enfrentamento desses dilemas?
Para Renata, a etapa do ensino médio foi cumprida. Ingressar no ensino superior é um plano que permanece em aberto para ela. Seu caso, com todos os erros e acertos, serve como referência para as escolas brasileiras comprometidas com o ideal democrático da inclusão, em especial no estágio do ensino médio. Que outras dificuldades, não aparentes no caso de Renata, podemos imaginar para o sucesso da educação inclusiva neste estágio?





Notas

Este caso é produto de uma série de entrevistas realizadas no Colégio Estadual Coronel Pilar, no Departamento de Educação Especial da Universidade Federal de Santa Maria e na Secretaria de Educação do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Agradecemos a disponibilidade e a atenção de todos os entrevistados.
©Instituto Rodrigo Mendes. Licença Creative Commons BY-NC-ND 2.5Site externo.. A cópia, distribuição e transmissão dessa obra são livres, sob as seguintes condições: Você deve creditar a obra como de autoria de Conrado Hübner Mendes, licenciada pelo Instituto Rodrigo Mendes; é vedado o uso para fins comerciais; é vedada a alteração, transformação ou criação em cima dessa obra, a não ser com autorização expressa do licenciante.

1 Esta é a sigla para “Atendimento Educacional Especializado”, serviço que, conforme a Política Nacional de Educação, a escola inclusiva presta ao estudante com deficiência no contraturno, em paralelo ao ensino regular. Difere-se, na concepção e na prática, da tradicional “Educação Especial”, modelo que separa os educandos com deficiência numa sala especial.
2 A base jurídica dessa polêmica gira em torno do art. 209 da Constituição Federal: “O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I - cumprimento das normas gerais da educação nacional; II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.” Para um breve resumo da questão, cf. “O direito à educação especial inclusiva: breves considerações”, de Fabiana Maria Lobo da Silva, no site Jus Navigandi, 01/2011.

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