A Organização Mundial da Saúde estima que aproximadamente 650 milhões de pessoas apresentam deficiências, com a maioria delas, cerca de 80% da população identificada acima, vivendo em países em desenvolvimento (Karr, 2011). Apesar disso, as deficiências ainda não fazem parte das linhas de pesquisa regulares, como acontece com as questões raciais, de gênero ou de etnia (Grech, 2011). O tema continua a ser relegado a linhas marginais, quando se trata de aspectos do planejamento e elaboração de políticas.
Em resposta a essa discriminação e marginalização vivida por pessoas com deficiência, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas (UNCRPD*, 2006) estipulou a necessidade de incluir o estudo deste assunto como parte de qualquer plano de desenvolvimento sustentável. O artigo 24 da UNCRPD afirma que é necessário prover medidas adequadas nos ambientes educacionais para maximizar o desenvolvimento acadêmico e social, consistente com a meta de total inclusão, de forma a:
“Favorecer a atitude receptiva em relação aos direitos das pessoas com deficiência e promover uma percepção positiva e maior consciência social, para todas as crianças e em todos os níveis de educação, do respeito às pessoas com deficiência” (UNCRPD, 2006).
Países que assinaram a convenção receberam a responsabilidade de fazer políticas inclusivas e alocar recursos em busca de alcançar esse intuito de tornar a deficiência aceita em todos os setores da sociedade.
Atendendo a essa exigência, o governo da África do Sul tem criado várias políticas que promovem as metas da UNCRPD, consagrando os direitos das pessoas com deficiência à participação igualitária na sociedade em que se vive. Essas políticas incluem a Proposta de Estratégia Nacional Sul-Africana Integrada para a Deficiência (INDS; elaborada pelo Gabinete do Vice-Presidente, 1997), o Ato para Equidade de Emprego (EEA; elaborada pelo Ministério do Trabalho Sul-Africano, 1998) e Proposta para Educação 6 sobre as Necessidades Educativas Especiais e Construção de uma Educação Inclusiva e Sistema de Treinamento (elaborada pelo Ministério da Educação Sul-Africano, 2001). Essas políticas esforçam-se para criar uma cultura de respeito, dignidade, participação igualitária e acesso a recursos para todos os cidadãos, considerando a história única e a diversidade que existe dentro do contexto sul-africano.
Apesar desse problema ser uma questão atual e proeminente em várias instituições de ensino superior (IES), elas têm, essencialmente, negligenciado a inserção da deficiência na maior parte dos debates sobre o assunto. Barnard e Lan (2007, p. 2) referem-se ao problema quando afirmam: “é irônico que nossa visão de diversidade seja tão limitada que raramente inclua as deficiências”. Os autores vão além, ao declarar que essa presença mínima deste conceito e a diminuta voz das pessoas com deficiência na questão “é ainda mais notável no currículo do ensino superior” (Barnard e Lan, 2007, p. 3). Se os estudantes se formam sem se envolver com tal tema nos programas de curso e só percebem tais pessoas como alguém que precisa de ajuda, como essas pessoas poderão ser vistas como iguais a seus pares (Bryen e Shapiro, 1996)? Mathews (2010, p. 527) propõe que um dos caminhos para se abordar este ponto deve ser a sua introdução como “um tópico, uma ideia, uma categoria de análise, uma reivindicação histórica” dentro dos currículos.
Em uma tentativa de enfrentar as barreiras e criar uma cultura mais inclusiva, o vice-reitor da Universidade da Cidade do Cabo (UCT), Dr. Max Price, direcionou o desenvolvimento de objetivos estratégicos para lidar com os atuais desafios da África do Sul. A UCT visa que seus graduados obtenham qualificações reconhecidas internacional e localmente, apoiadas em valores relativos à cidadania engajada e à justiça social, enquanto promove a diversidade e a transformação dentro e fora da instituição (UCT Research Reports, 2008). Os funcionários e estudantes vêm de mais de 100 países, o que contribui para a diversificação da universidade. A UCT tem aproximadamente 26 mil estudantes em seis faculdades, centros de desenvolvimento do ensino superior (CDES) e na Escola de Graduação em Administração (EGA).
Dois dos objetivos estratégicos da UCT são: 1) elevar a qualidade e o perfil dos estudantes da UCT e 2) expandir e aumentar a contribuição da universidade para a resolução dos desafios da África do Sul (UCT Strategic Plan, 2009). Tais objetivos influenciaram o projeto de pesquisa DIRECT. Sua meta era de descobrir se a deficiência estava inserida nos programas e como tal inserção estava ocorrendo. Tinha como quadro de referências os direitos humanos e a justiça social. Baseadas nos resultados, certas recomendações foram apresentadas às faculdades, conforme discutido no próximo tópico.
As conclusões foram classificadas em quatro temas:
a) Compreensão da deficiência – as principais ideias sobre a inclusão das pessoas com deficiência estavam relacionadas ao modelo médico ou ao social. Professores que atuam no modelo médico frequentemente ensinavam como “consertar” e administrar os impedimentos que uma pessoa tenha, enquanto os que praticavam o modelo social ensinavam principalmente sobre as barreiras individuais, sociais e, por vezes, ambientais, para a participação.
b) Foco/práticas de inclusão – a deficiência era vista como uma questão “adicional”, que poderia ser abordada, e não como parte das exigências disciplinares, em algumas faculdades. Isso significa que o tema era majoritariamente incluído de uma maneira ad hoc, de acordo com o interesse do professor.
c) Contexto político – visto a partir de quais especificidade das políticas sobre as deficiências seriam discutidas em sala de aula.
d) Experiência de inclusão – o corpo acadêmico enfrenta um certo número de desafios ao incluir a deficiência, e seu entendimento frequentemente é influenciado por ‘quando’ e ‘qual’ especificidade seria incluída em sua disciplina. Além disso, pesavam questões relacionadas à disponibilidade das estruturas organizacionais de suporte, à gestão que os professores faziam de seu tempo e à sobrecarga de trabalho, para citar algumas.
Esse estudo não teve foco nas pessoas com deficiência, mas em como o conceito era ensinado e pesquisado dentro dos programas das faculdades. O estudo visava a divulgação do campo de pesquisa. Assim, as recomendações dadas abaixo vieram de três áreas – 1) discussões com os participantes sobre o que poderia ajudá-los a utilizar o conceito de deficiência em suas disciplinas e pesquisas; 2) experiências de pesquisadores como profissionais ligados ao assunto e 3) literatura básica relevante na inclusão dessas pessoas. A primeira questão a ser discutida é a das atitudes.
Recomendações
As atitudes, valores e ideias que as pessoas relatam sobre a deficiência frequentemente influenciam como as pessoas se comportam sobre o tema. Não é desprezível o efeito prejudicial das atitudes negativas sobre as pessoas com deficiência, tanto que estas foram identificadas como uma das principais barreiras para se abordar a questão (WHO, 2011). Os participantes do presente estudo muitas vezes se sentiram isolados, sem conhecer outros acadêmicos que incluíssem o conceito em suas disciplinas ou pesquisas. Os entrevistados indicaram que a criação de um espaço inclusivo que torne a deficiência ‘visível’ poderia ajudá-los a difundir o assunto. Workshops e seminários anuais ou semestrais sobre o tema possibilitariam tal conquista. Colaborações interdisciplinares deveriam ser encorajadas nas equipes, dentro da universidade, e pessoas externas deveriam ter a oportunidade de mostrar seus trabalhos, criando a consciência da necessidade de abordar a falta de conhecimento sobre o problema, o que poderia ter impactos nas atitudes das pessoas.
Esse tipo de seminário foi planejado e realizado mensalmente pelo Programa de Estudos sobre a Deficiência, para disseminar resultados de pesquisas relacionadas ao tema. Foram convidados a participar o corpo acadêmico da universidade e de outras IES. Palestrantes de outras instituições e de organizações não-governamentais (ONGs) foram chamados para compartilhar seu trabalho. Os seminários criaram uma plataforma para o debate das práticas, questões e políticas atuais sobre a deficiência. Estudantes de pós-graduação de várias faculdades apresentaram suas teses e não só receberam feedbacks relevantes, como também tiveram a chance de formar uma rede, conectando-se a pessoas que fazem trabalhos em áreas similares. Desse modo, as atitudes foram impactadas ao se construir uma comunidade de práticas sobre a inclusão.
Ao incluir a deficiência em seus programas, as faculdades precisam se esforçar para ter um conceito que transcenda os modelos médico e social e outras perspectivas “conhecidas” sobre o assunto. Há a necessidade de explorar outros quadros referenciais para entender o tema, incluindo marcos indígenas que possam estar presentes. Um exemplo é o uso da filosofia africana do “Ubuntu” como paradigma de compreensão desta questão no contexto do país. Ubuntu é um sistema de crenças local que coloca a humanidade no centro de todas as atividades ou ações. O bem maior da coletividade é colocado acima de qualquer aspiração individual e egocêntrica, colocando a compaixão e a dignidade humana em primeiro lugar (Malisa, 2011; Higgs and Van Wyk, 2007; Nussbaum, 2003). De acordo com tal filosofia, todos são importantes, relevantes e inter-relacionados. Ao reduzir os outros, reduzimos a nós mesmos. Então, ao não se dar espaço para a inserção da deficiência, também sofremos impactos em nosso próprio desenvolvimento. Dessa forma, indagar sobre o tópico por diferentes perspectivas enriqueceria a experiência da diversidade nos programas universitários, o que construiria uma sociedade mais inclusiva e igualitária.
Os programas universitários estudados tinham uma gama de temas sobre a diversidade inseridos por seus vários departamentos. Os participantes abordaram ao menos um tópico sobre o assunto em suas aulas e/ou pesquisas, mas frequentemente sentiram ser inadequado incluir as deficiências (Ohajunwa e Mckenzie, 2013). Elas foram frequentemente vistas como algo para o qual se necessita de treinamento extra. É importante que a questão seja reconhecida como um desses temas, tanto quanto raça, sexualidade, idade, cultura etc. A deficiência é uma parte da essência do ser humano. Então, ao planejar uma grade curricular abrangente para cada disciplina, ela deveria figurar entre os conceitos abordados.
A diversidade também precisa ser facilitada por meio do recrutamento de funcionários com deficiência e do aumento potencial do ingresso de alunos com deficiência. A unidade de serviços para a deficiência da UCT dá suporte a esse processo ao assegurar que a acessibilidade seja desenvolvida. Estudantes e funcionários recebem assistência para a vida universitária. E a experiência de estar em uma IES não é benéfica apenas para a pessoa com deficiência. Pesquisas mostram que essa experiência promove uma cultura inclusiva já que contribui para o “desenvolvimento pessoal entre as pessoas sem deficiência” (May, 2012, p. 241; O’Connor, Kubiak, Espiner & O’Brien, 2012).
Não é apenas o desenvolvimento pessoal dos funcionários e estudantes nas IES que devem ser impactados, mas o da organização da instituição. A inserção do debate sobre a deficiência nas atividades de integração social deve ser aumentada. Certos incentivos devem ser dados pelos projetos e serviços inovadores de ensino e pesquisa na área, como parte da sensibilização social.
Esses incentivos e sistemas de suporte só acontecem com a criação de políticas progressivas e relevantes que encorajem uma cultura inclusiva. As lideranças universitárias devem estar engajadas na criação e implementação de políticas que dizem respeito à deficiência. Os participantes desse estudo indicaram que eles incluíram o tema de forma ad hoc principalmente por causa de sua sobrecarga e da pressão dos prazos. Eles afirmaram que, pelo fato de não fazer parte dos requisitos disciplinares, inseri-lo era uma ‘tarefa adicional’ para eles (Ohajunwa, Mckenzie, Hardy e Lorenzo, 2014). Uma liderança universitária engajada no nível das faculdades pode levar a mudanças programáticas que deem suporte aos acadêmicos para incluir a deficiência porque, afinal, é uma questão de diversidade.
A projeto DIRECT pode ser realizada em qualquer IES para construir indicadores de base para o tipo de ensino e pesquisa sobre deficiência que já foi feito ou está sendo realizado na instituição. Isso não só realçaria as boas práticas e ajudaria a planejar resultados, como também divulgaria as políticas sobre o assunto. Unida a essa questão de informar resultados está a necessidade de explorar as perspectivas do ensino e aprendizagem dos estudantes com deficiência dentro da instituição. Essas perspectivas contribuirão para compreender a experiência vivida por eles. Também ajudará, espera-se, a abordar os problemas do estigma e dos estereótipos, desenvolvendo tais valores nos graduandos das IES.
Em conclusão, o tema da inclusão da deficiência não aparece sem desafios e precisa, certamente, de reflexão e revisão constante. O contexto também desempenha um papel importante. Entretanto, é imperativo que ela seja colocada em pauta nos níveis da instituição, das faculdades e dos departamentos. Essa necessidade é fundamental para o avanço e a sustentabilidade das práticas inovadoras relacionadas à pesquisa e ao ensino sobre o conceito. As IES precisam entender que a inserção da deficiência como tópico de estudo não é uma questão de escolha, mas de direitos humanos e da diversidade. Considerando o impacto resultante nos graduados e na esfera social como um todo, a inclusão da deficiência se torna imperativa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário